Wednesday, December 12, 2007
Suicídio Involuntário.


Fotografia: aflito quadro. A besta esconde-se na sala. Barriga para cima, costas na tijuleira fria, olhos somando as brechas do tecto. As costelas aparecem-lhe intermitentementes pelo manifesto ritmo de vida que cessa. Feliz na sua agonia, a besta espeta o indicador na ferida pastosa e, curiosa, contempla. O sangue não estancava, para seu gáudio e delícia. As lágrimas pingavam mudas, mas ouviam-se já os violinos e a orquestra maior.

' Meu amor,
e não teu, que sei bem o que vai contigo. Lamentavelmente morri. Eu bem sei do teu grau de cumplicidade neste crime. Tu começaste, eu só fiz o trabalho sujo. Aliás imagino em que estado ficaria a tua roupa e o teu espírito se tivesses de o fazer. Agora sabes como me preocupo com o teu aspecto.
És mesmo estúpido nesse teu dandismo de poeta farsante. Desculpa lá o insulto, mas não te perdoo as dores que tive, tu sabes que sou desajeitada e, ainda assim, deixaste-me a sós com a tarefa. Eu ainda pensei em ligar-te, pedir-te para me ajudares, para me dizeres umas frasesinhas de incentivo, daquelas que te dão tanto gozo. Acabei por abandonar a ideia quando lembrei que hoje há happy hour no Sears.
Agora que estou morta, não devo mesmo estar bonita. Aposto que amanhã vais vestir olheira-remorço acompanhado da jaqueta preta e do lenço cinza, não vais estar assim tão bonito. És muito previsível, tu. De tal forma maquiavélico que antes mesmo de não me amares já tinhas criado o alibi perfeito para a fatalidade.
Oh meu amor... Quanto mais terno o beijo, mais frio o teu coração e mais eu te amava. Quanto mais apaixonado o toque, mais amargo teu corpo e mais eu te amava. Mas tanto altruísmo amoroso é lenda. Eu já estava a morrer quando tu decidiste, em desespero de ti próprio, aliviar-nos aos dois. E talvez por isso mereças algum reconhecimento maior dos anjos. Talvez por isso, sejas o apogeu da santidade demoníaca, e mais eu te amava. Assim em acto de sinceridade, tentei prescrever-te um genérico deficiente. Tu curavas com amor, dizias, eu receitei-te o meu. Como vês, a ordem universal não se comoveu com o meu esforço interesseiro de te curar. A entropia continua a fazer das suas, a malandra.
Agora que cá não estou, desconfio que o teu egotismo narcísico vai perder um tanto ao quanto a luz. Eu polia-o bem com todos os cuidados, nisso acho difícil substituires-me. Em tudo o resto te arranjarás. Estou a ser malvada, tu também tinhas os teus ouros. Às vezes elogiavas-me, outras vezes não. Eras cordeal e bem educado. Traste. Amo-te. Estou morta, já posso palrar livre. E já viste o que é engraçado, tu também me morreste agora. Assim como tudo e todos. Está tudo morto. Pela primeira vez, não és diferente em nada, não destacas. Isso deve baralhar-te.
Agora, meu tesouro, sem raivas ou ironias, me mostro nua. O amor é isto e nada mais ou é aquilo e tudo demais. Agora de alguma forma viverei em ti, a chama apagada das velas o sumo da fruta fresca, aroma das flores com que apraltava a sala de jantar. Amei-te tanto que quase me doi meu corpo e alma mortos, na sua impossibilidade sensível. Amo-te ainda, no meio da terra castanha, do silêncio e da solidão.
Lírios.'

Fotografia: a besta semicerrava as ópticas com intervalos irregulares e curtos, involuntariamente. O facto é que o instante fascinava pela indefinição temporal. Cansada de abusar, sentiu-se preenchida e assassinou o instante na sua beleza para se deixar ir. Black-out megalómano. O mundo morreu. Grande assassina.
Iludida.

Ninguém morre de amor, grande besta.


Esa wrote on 9:22 PM.