Tuesday, December 05, 2006
Rua da Misericórdia.

A Rua da Misericórdia é o intestino grosso da Cidade. Muitas alminhas dizem em tempos ter sido coração, mas como prova sustentam-se em relatos de septuagenários, esquecidos e desidratados, que moram em caixotes T0 na Rua.
A Rua é grande e implacável. Parece ter vida própria quando nos despe, nos desnutre, nos rouba, nos maltrata, nos droga, nos arrefece, nos espanca…Tem uma entrada estreita que intimida quem ainda tem muito a perder. Tem largos portões para quem desistiu das veias e artérias coronárias, para quem não tem já nada a não ser o pulsar interior, e mesmo esse é já demasiado barulhento... Tem um átrio gigante e convidativo para quem é fraco e indiferente, para quem perdeu o sangue e tem antes fel a correr pelo corpo.
Ai, pudesse eu contar-vos d’a Rua, de sua anatomia e psique, mas é de tal modo densa e complexa que me perderia em suas vísceras ácidas e ensanguentadas. Tem lampiões consumidos de noite e paredes pintadas com vómitos bêbedos. Toda a sua pele é medo e nojo e merda.
Talvez s’eu percebesse seu sistema endócrino, s’eu entendesse sua infância, s’eu lhe tirasse das mais variadas radiografias e amostras de fluidos para análise… Diagnosticava. Que patologia se esconde em ti?
Aqueles, da Rua, não sei distinguir se são sintoma ou doença. Se são eles ou se são, antes e só, Ela.
É este vírus impiedoso que nos corrói, dizem, mas não procuram cura. O sedentarismo alucinante prende e apaixona quando não há mais nada para parasitar. Ócio triste. Já nem lágrimas há, dão muito trabalho. Sofrer é um luxo dos vivos!
Reproduz células doentes, metamorfoses de vida, e regenera-se em dor para a dobrar em morfinas e iguais. A Rua é um cancro em fases terminais, mas que jamais cessa. Não fala porque está constantemente nauseada, macerada, cansada.
Não perdoa, não sara, não tolera unguentos, nem bálsamos milagrosos, nem tratamentos. Ninguém a crê capaz de mudança.
Fotografia: na tabuleta pregada, ainda se consegue ler, sem que as cataratas dos anos apaguem as letras míopes. A Rua é da Misericórdia, mas a Rua não tem misericórdia de ninguém.


Esa wrote on 1:40 PM.