Monday, December 04, 2006
A-Senhora-dos-Chás.

A-Senhora-dos-Chás vive na casa velha da rua da Praça. Tem uma trança enrolada e colada a cada alçado lateral da cabeça e lábios carmim e olhos lilás-anil, fala quem viu.
A casa d’A-Senhora-dos-Chás cheira a canela e a camomila, a tília e a tamarindo, a amêndoa e à’açúcar mascavado, a cidreira e alecrim, a menta, a hortelã, jasmim…
É frequente ver seu rosado vulto no mercado em hora vã, procurando suas compras na companhia da irmã…: Rosa, o gengibre, onde está?
Todos os dias, logo pela manhã, quando a estrela sobe, A-Senhora-dos-Chás corre a bonita cortina encarnada da janela da fachada. E toda a gente sabe que já está acordada. É assim.
As meninas novas, cachopitas desatadas, gaiatas barulhentas, sonhadoras, juntam-se muitas vezes no sopé da fonte nova. A desculpa é sempre a mesma, perfeita de essência, pois se são os próprios pais educadores que as mandam buscar água diariamente. E entre garrafões de água fresca, joga-se mais tempo que o devido, chega-se a casa mais tarde e de roupa ensopada. Chá de Sonhos – água e meia dúzia de garotas patetas. E Ana, do cimo da sua autoridade, do alto de seus 20 seculares anos, prega as teorias e as essenciais certezas, que, apesar de fugazes e transitórias, são aceites com gravidade e seriedade! Uma postura que não combina nada com o ridículo dos tópicos, e faz rir muito. Ana muito senhora, nunca é contradita. Faz monólogos imensos e vê as caras delas, algumas ainda com bata de colégio, com os narizes sujos das muitas horas sem mãe, outras mais desenvoltas em seus precoces impulsos adolescentes tentam copiar Ana em tudo, desejando ser em anos, mulher.
Todas as moças da vila (e de muitas vilas acima e abaixo desta) procuram A-Senhora-dos-chás quando a idade o diz, o pede. E a simpática e bochechuda velhinha, já meio torpe, de pés grossos de quem correu mundo de lés-a-lés, senta-se na mesma poltrona paciente e diz-lhes. Antes que o entusiasmo lhes saia boca fora ela levanta-se, com o tempo todo do mundo, e escolhe ervas e coisas, e faz um chá especial. E todas elas se deliciam enquanto a velha lhes dá profecias de seu casório, compromisso ou enamoramento. Ana tem os anos e a curiosidade.
Um dia destes, Ana falava ao seu clube de tontas como se presidente, como era já costume. Ensinava-as o jeito correcto de olhar os rapazes, de os seduzir. O grupinho dos 14 aos 18 estava como que em estado hipnótico. Dada a tertúlia como concluída, Ana regressou a casa pelo caminho que dava à rua da Praça. Chutava as pedrinhas do chão e trauteava musicas da moda, numa angústia frustrada de conferencista incompreendido. Ana, é facto, está num intermédio ingrato de menina-mulher sem ninguém que lhe dê o adubo d’alma que precisa.
Viu na esquina, sorrindo ao esplendor de fim-de-tarde, a casa velha que cheira a incensos e especiarias e a madeiras e chás.. Teve impulsos e ganas, mas não podia.

Fotografia: e ali estava Ana, de longos cabelos amarelos, de olhos de mel sensuais, de feições comuns, em trajes de trabalhos campestres, socos martirizados do mato, canelas picadas das silvas, a saia engelhada e a guedelha confusa … Especada à porta daquela casa, com antebraço e braço em arco quebrado, de punho cerrado como quem vai bater.

Hesita. Recusa. Vira costas à portinhola, mas nesse mesmo instante ela abre-se na sua retaguarda . Afinal era hora…


Esa wrote on 12:08 PM.