Tuesday, December 05, 2006
Outdoor.

De minha janela metropolitana, donde o mundo se abre para mim, vejo luzes tricolores e fumos de vários odores que sabem mal ao gosto quando respiro. Há uma cadência própria e infeliz nestes carros que passam, um ritmo exausto de fim de jornada. E tudo foi sempre assim.
Um dia destes, de bloco e caneta me armei, para domar suas esquinas, amansar suas avenidas irrequietas, dar-lhe mais cor e nitidez, com traço inteiro e certo de quem sabe o que falta. Presunção. Porém, mal de mim, justamente quando abro as cortinas fronteiriças, reparo, houve alguém que teve ideia igual. Houve alguém que teve a mesma ousadia minha, mas já a concretizara insolentemente.
Nos primeiros dois minutos, raiva ( Não fui eu quem descobriu o ornato perfeito, quem te criou.)! Depois apaixonei-me.
És musa colada em painel colado em betão colado à terra. Tens pele Photoshop e facetas de porcelana nos dentes. É provável que tenhas extensões, lentes, camadas de maquilhagem e silicone forçado. Linda.
És, definitivamente, tudo o que este homem sempre sonhou como perfeito. À perfeição não se examinam pormenores, seja pelo fascínio primeiro que arrebata e encanta qual feitiço (cega), seja pelo medo de perder a verdade da evidência que a tanto custo conquistámos. .
Tapaste a vista ao mundo e agora ele esquecesse-se de mim. Aqui, na minha janela, já não luz nem brilha a acrópole dos tempos modernos. Aqui já não lhe alcanço o torço, nem os membros, nem mesmo os calcanhares. Queres-me todo teu. Isolaste-me, e, contudo, quebras-te em silêncios que molestam.
Fotografia: Eu e tu em tentadores tête-à-têtes. Tu muda com lettrings luminosos que te trespassam o corpo a metade. Eu contagiado por teus discursos imaginados. Tenho o cabelo às ondas no luar e a minha t-shirt é fresca demais para o teu frio. Tenho pose de artista que vê obra d’outrém e que cobiça ter dessa arte no sangue.
Penso no teu nome todos os dias. Sorriste?


Esa wrote on 3:50 PM.
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Rua da Misericórdia.

A Rua da Misericórdia é o intestino grosso da Cidade. Muitas alminhas dizem em tempos ter sido coração, mas como prova sustentam-se em relatos de septuagenários, esquecidos e desidratados, que moram em caixotes T0 na Rua.
A Rua é grande e implacável. Parece ter vida própria quando nos despe, nos desnutre, nos rouba, nos maltrata, nos droga, nos arrefece, nos espanca…Tem uma entrada estreita que intimida quem ainda tem muito a perder. Tem largos portões para quem desistiu das veias e artérias coronárias, para quem não tem já nada a não ser o pulsar interior, e mesmo esse é já demasiado barulhento... Tem um átrio gigante e convidativo para quem é fraco e indiferente, para quem perdeu o sangue e tem antes fel a correr pelo corpo.
Ai, pudesse eu contar-vos d’a Rua, de sua anatomia e psique, mas é de tal modo densa e complexa que me perderia em suas vísceras ácidas e ensanguentadas. Tem lampiões consumidos de noite e paredes pintadas com vómitos bêbedos. Toda a sua pele é medo e nojo e merda.
Talvez s’eu percebesse seu sistema endócrino, s’eu entendesse sua infância, s’eu lhe tirasse das mais variadas radiografias e amostras de fluidos para análise… Diagnosticava. Que patologia se esconde em ti?
Aqueles, da Rua, não sei distinguir se são sintoma ou doença. Se são eles ou se são, antes e só, Ela.
É este vírus impiedoso que nos corrói, dizem, mas não procuram cura. O sedentarismo alucinante prende e apaixona quando não há mais nada para parasitar. Ócio triste. Já nem lágrimas há, dão muito trabalho. Sofrer é um luxo dos vivos!
Reproduz células doentes, metamorfoses de vida, e regenera-se em dor para a dobrar em morfinas e iguais. A Rua é um cancro em fases terminais, mas que jamais cessa. Não fala porque está constantemente nauseada, macerada, cansada.
Não perdoa, não sara, não tolera unguentos, nem bálsamos milagrosos, nem tratamentos. Ninguém a crê capaz de mudança.
Fotografia: na tabuleta pregada, ainda se consegue ler, sem que as cataratas dos anos apaguem as letras míopes. A Rua é da Misericórdia, mas a Rua não tem misericórdia de ninguém.


Esa wrote on 1:40 PM.
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Monday, December 04, 2006
A-Senhora-dos-Chás.

A-Senhora-dos-Chás vive na casa velha da rua da Praça. Tem uma trança enrolada e colada a cada alçado lateral da cabeça e lábios carmim e olhos lilás-anil, fala quem viu.
A casa d’A-Senhora-dos-Chás cheira a canela e a camomila, a tília e a tamarindo, a amêndoa e à’açúcar mascavado, a cidreira e alecrim, a menta, a hortelã, jasmim…
É frequente ver seu rosado vulto no mercado em hora vã, procurando suas compras na companhia da irmã…: Rosa, o gengibre, onde está?
Todos os dias, logo pela manhã, quando a estrela sobe, A-Senhora-dos-Chás corre a bonita cortina encarnada da janela da fachada. E toda a gente sabe que já está acordada. É assim.
As meninas novas, cachopitas desatadas, gaiatas barulhentas, sonhadoras, juntam-se muitas vezes no sopé da fonte nova. A desculpa é sempre a mesma, perfeita de essência, pois se são os próprios pais educadores que as mandam buscar água diariamente. E entre garrafões de água fresca, joga-se mais tempo que o devido, chega-se a casa mais tarde e de roupa ensopada. Chá de Sonhos – água e meia dúzia de garotas patetas. E Ana, do cimo da sua autoridade, do alto de seus 20 seculares anos, prega as teorias e as essenciais certezas, que, apesar de fugazes e transitórias, são aceites com gravidade e seriedade! Uma postura que não combina nada com o ridículo dos tópicos, e faz rir muito. Ana muito senhora, nunca é contradita. Faz monólogos imensos e vê as caras delas, algumas ainda com bata de colégio, com os narizes sujos das muitas horas sem mãe, outras mais desenvoltas em seus precoces impulsos adolescentes tentam copiar Ana em tudo, desejando ser em anos, mulher.
Todas as moças da vila (e de muitas vilas acima e abaixo desta) procuram A-Senhora-dos-chás quando a idade o diz, o pede. E a simpática e bochechuda velhinha, já meio torpe, de pés grossos de quem correu mundo de lés-a-lés, senta-se na mesma poltrona paciente e diz-lhes. Antes que o entusiasmo lhes saia boca fora ela levanta-se, com o tempo todo do mundo, e escolhe ervas e coisas, e faz um chá especial. E todas elas se deliciam enquanto a velha lhes dá profecias de seu casório, compromisso ou enamoramento. Ana tem os anos e a curiosidade.
Um dia destes, Ana falava ao seu clube de tontas como se presidente, como era já costume. Ensinava-as o jeito correcto de olhar os rapazes, de os seduzir. O grupinho dos 14 aos 18 estava como que em estado hipnótico. Dada a tertúlia como concluída, Ana regressou a casa pelo caminho que dava à rua da Praça. Chutava as pedrinhas do chão e trauteava musicas da moda, numa angústia frustrada de conferencista incompreendido. Ana, é facto, está num intermédio ingrato de menina-mulher sem ninguém que lhe dê o adubo d’alma que precisa.
Viu na esquina, sorrindo ao esplendor de fim-de-tarde, a casa velha que cheira a incensos e especiarias e a madeiras e chás.. Teve impulsos e ganas, mas não podia.

Fotografia: e ali estava Ana, de longos cabelos amarelos, de olhos de mel sensuais, de feições comuns, em trajes de trabalhos campestres, socos martirizados do mato, canelas picadas das silvas, a saia engelhada e a guedelha confusa … Especada à porta daquela casa, com antebraço e braço em arco quebrado, de punho cerrado como quem vai bater.

Hesita. Recusa. Vira costas à portinhola, mas nesse mesmo instante ela abre-se na sua retaguarda . Afinal era hora…


Esa wrote on 12:08 PM.
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